Fico imaginando como Nelson Rodrigues narraria á vitória do Fluminense na noite de ontem. Então resolvi adaptar uma de suas crônicas. Que seria mais ou menos assim:
Amigos, os idiotas da objetividade negam o milagre. Mas o que foi a deslumbrante vitória do Fluminense, senão isso mesmo ou seja um cínico e deslavado milagre? Pela primeira vez na história do homem, um time desacreditado e, pior do que desacreditado, um time que perdeu 02 vezes para o timinho do Botafogo, sem nem um craque extraordinário – vence o Boca Juniors da Argentina contra tudo e contra todos.
Amigos, os idiotas da objetividade negam o milagre. Mas o que foi a deslumbrante vitória do Fluminense, senão isso mesmo ou seja um cínico e deslavado milagre? Pela primeira vez na história do homem, um time desacreditado e, pior do que desacreditado, um time que perdeu 02 vezes para o timinho do Botafogo, sem nem um craque extraordinário – vence o Boca Juniors da Argentina contra tudo e contra todos.
E, antes de continuar, duas palavras sobre o profeta Renato Gaúcho. Depois dos 3x1 de ontem, ele está promovido a herói eterno do tricolor carioca. No ano passado, quase acertou, quase. Mas este ano soou a sua grande hora. Ele disse que o Fluminense ia ser campeão e o tricolor construiria sua estrada da gloria, a mais linda, a mais merecida que se possa imaginar. Desde ontem, o profeta podia desfilar na passarela da fama, e na terra dos deuses do futebol.
Claro que a grande vitória não se improvisa, nem depende de fatores circunstanciais. Há seis mil anos estava escrito que, ontem, Washington , Conca e Dodô, iam estourar às redes do Boca Juniors. O nosso futuro título é, pois, uma fatalidade de sessenta séculos. Mas é óbvio, por outro lado, que a Fatalidade precisa ser umedecida, precisa ser lubrificada pelo suor do homem. Houve momentos, na peleja, em que o Fluminense lutou tanto que o suor do time passou a ser grosso e elástico como o dos cavalos.
O bonito, o gostoso, o sublime do campeonato é que lutamos em campo e fora do campo. Por vezes, além do adversário, juiz e bandeirinhas - até os imponderáveis se juntavam contra nós. Por exemplo: o meu fraterno amigo Armando Nogueira. Um dia, ou noite, sei lá, o confrade teve uma visão de Joana D’Arc. Aos seus olhos, o Fluminense aparecia de lanterninha na mão. Já no dia seguinte, o Armando, que é um estilista, um Flaubert da bola, fez a frase histórica: "O Fluminense é o lanterninha dos grandes" e mais: o "Fluminense não tem nem conjunto, nem valores individuais". Nada, portanto.
Assim foi criada a humildade tricolor. Em vão, parentes, conhecidos e torcedores, protestavam junto ao Armando: "Mas o Fluminense chegou a libertadores classificando-se 02 vezes!". Amigos, ninguém mais obstinado do que o sujeito que é portador de um erro colossal. Repito: o ser humano acredita mais nos seus equívocos do que nas suas verdades. Justiça se lhe faça: o Armando foi fiel ao seu erro até o fim. De mais a mais, ele defendia duas frases e o colega põe a retórica acima da realidade. Para ele, um efeito literário vale mais que duzentos fatos.
Não se pense que o Fluminense recusou as sandálias da humildade. Sendo um grande clube, o maior do mundo - tem direito de ser humilde. Portanto, passamos a andar, com um imaginário passarinho no ombro, segundo o figurino franciscano. A cidade foi testemunha auditiva e ocular das nossas provações, só comparáveis às de Jó. Com uma agravante para o nosso lado: é que a Jó foi poupado do estilo do Armando e o sarcasmo dos paulistas invejosos e flamenguistas. E outra forma de martírio que Jó não conheceu: as piadas hediondas.
Eu poderia falar ainda de juizes, de bandeirinhas, que fizeram o diabo conosco. Mas vamos deixar isso pra lá. O fato é que, desde quarta-feira passada, o Fluminense estava ungido. Só os lorpas, os pascácios, os bovinos, não percebiam que cada uma de nossas cabeças levava um halo intenso e lívido de futuro campeão. O olhar de qualquer "pó de arroz" vazava luz. Há seis mil anos estava escrito.
A festa da cidade começou na manhã de ontem. Por toda a parte, apareciam delirantes bandeiras tricolores. Toda a tricolagem partia para o Maracanã na certeza profética. Pela manhã, o Chico Buarque batia o telefone para mim: "Deus te ouça, Chico, Deus te ouça!" E um turista que por aqui passasse, e visse tantas bandeiras tricolores, havia de anotar no seu caderninho: "Começou foi à Nova Revolução Francesa!" Finalmente, o jogo. Segundo tempo Boca Junior 1x0. Mas veio a reação e o tricolor levou tudo de roldão, tudo. Nunca um time mereceu tanto um título.
Já ia me esquecendo do personagem da semana. São três: primeiro Conca, que foi um maravilhoso comandante. Ele soube guiar a equipe, técnica e taticamente, e, ao mesmo tempo, transmitir-lhe uma enorme sede, uma fome enorme do título. Ontem, quando o jogador do Fluminense caía, vinha abraçado na sua paixão. Outros dois personagens: Thiago Silva e Luiz Alberto, os dois garotos da zaga. Vocês viram o "goal" de Washington: perfeito e irretocável como um verso eterno. E em seguida, o de Conca. O nosso argentino encheu o pé e houve um clarão no estádio. Amigos, ontem não houve noite na cidade. O que todos viram foi a chama do grande sol do Fluminense, com o seu patético esplendor.
Nélson Rodrigues
Nélson Rodrigues
Um comentário:
Meu querido xará:
Nelson esqueceu-se de falar do Dodô que - digamos a verdade - junto com o Conca, foi maravilhoso.
Dodô deu tres sustos nos inimigos gringos. E fechou a festa com chave de ouro que merecia. Um drible que ele deu no meio de campo do Boca, rodando sobre o próprio corpo e sainda lá na frente com a bola, pagou o ingresso. Merecia o gol. E eu que torci pelo Fluminense em nome do meu passado de nadador do tricolor das Laranjeiras, fiquei deslumbrado com o Dodô eterno ídolo botafoguense...
Finalmente: juntar a sua verve, e a sua imaginação, e a sua cultura é uma covardia inominavel com qualquer pessoa que ouse escrever. Você é brilhante!
Abração,
Gonzaga
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