quarta-feira, 30 de novembro de 2011

COMO É BOM CONTAR COM OS POETAS




DAS UTOPIAS


Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos se não fora
A mágica presença das estrelas!

( Mario Quintana ) - Espelho Mágico

terça-feira, 22 de novembro de 2011

A VISÃO LÚCIDA DE UM MAGISTRADO COMPROMETIDO COM A DEMOCRACIA


Na tragédia de Sófocles, Édipo se afastou do reino de Corinto para evitar a desgraça prevista pelo Oráculo de Delfos. Todavia, o herói grego não escapou de derramar o sangue do pai e de deitar no leito de sua mãe. Na peça que inaugura a Trilogia Tebana, foi a busca pela verdade sobre sua origem que levou Édipo, esperança do povo de Tebas, à ruína. Elementos dessa tragédia, em pleno século XXI, parecem se repetir no Rio de Janeiro: há uma morte anunciada, não por oráculos, mas por seguidas ameaças que chegam ao conhecimento dos órgãos de segurança (e que ganham credibilidade a partir da postura do Governo do Estado); um desejo de verdade que levou um deputado a ser protagonista de uma das mais polêmicas Comissões Parlamentares de Inquérito da história da Assembléia Legislativa fluminense, a “CPI das milícias” (que investigou o funcionamento de organizações criminosas que contam com a participação e o apoio, ainda que velado, de membros do executivo, do legislativo e do judiciário); e, por fim, o medo de que essa nefasta previsão se confirme.

Marx deixou escrito que a história se repetiria, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. Porém, em uma sociedade marcada pelo autoritarismo, que naturaliza a violência e a ilegalidade, inclusive promovida por agentes estatais, não há motivo para se esperar ações irreverentes ou burlescas. No Brasil, país de capitalismo tardio no qual as promessas da modernidade (liberdade, igualdade e fraternidade) nunca passaram de ficções do discurso jurídico-burguês, inacessíveis à maioria da população, há uma tendência a que certos fatos vivenciados no passado, por mais perversos ou irracionais que se apresentem, voltem a ocorrer no presente e se repitam no futuro: violência gera cada vez mais violência no campo e na cidade, ilegalidades são combatidas com o recurso a outras medidas ilegais, mortes anunciadas, como as da religiosa Dorothy Stang e da juíza Patrícia Accioly, não são impedidas, por mais que pareçam evitáveis. A tragédia se repete. Mudam-se os nomes das vítimas, atualizam-se as datas, mas o horror permanece.

O professor de história e militante dos direitos humanos Marcelo Freixo conhece de perto a inação do Estado, a opção pelo encarceramento em massa da população pobre e os equívocos políticos que ampliaram os conflitos na cidade do Rio de Janeiro. Ainda jovem, ministrou aulas à população carcerária e adquiriu visibilidade ao denunciar atos arbitrários praticados por agentes públicos. Freixo sofreu também diretamente as conseqüências da violência urbana por ocasião do assassinato de seu irmão, também militante de um partido de esquerda. Na organização Justiça Global atuou junto às vítimas do Estado Policial que ganhou força no Rio de Janeiro com a derrocada do projeto de Leonel Brizola e Nilo Batista que, entre erros e acertos (e muitos ataques da imprensa burguesa), tentava construir políticas públicas de segurança pautadas pela necessidade de se respeitar os direitos fundamentais das camadas mais pobres da população. Eleito e reeleito deputado estadual, nunca deixou de denunciar a opção governamental de reduzir a política de segurança à gestão da pobreza através da repressão policial e a manipulação do medo da população com o objetivo de angariar votos.

Pode-se afirmar que foi a preocupação com as variadas formas de opressão que levou Marcelo Freixo à questão das “milícias”. Esses grupos paramilitares aparecem na trajetória do deputado fluminense como a Esfinge na de Édipo: decifrá-las ou ser devorado por um sistema que naturalizava o arbítrio e a violência contra parcela considerável da população. Se, ao decifrar o enigma, Édipo teve Tebas aos seus pés, a “CPI das Milícias”, o instrumento legislativo manejado contra os grupos paramilitares, significava para o jovem deputado não só uma vitória política contra a naturalização da opressão como também a visibilidade necessária à sua própria manutenção na arena política fluminense (Freixo, após a “CPI das Milícias”, foi reeleito com expressiva votação, o que permitiu que seu partido – o PSOL – ganhasse mais uma cadeira no parlamento).

Registre-se que, em um primeiro momento, as “Milícias” foram apresentadas à opinião pública como uma solução à questão da violência nos bairros e comunidades cariocas. Esses grupos, cujos primeiros sinais de atuação apareceram há mais de uma década, formados por pessoas que se propunham a utilizar a força para garantir a ordem, contavam com a simpatia das autoridades. As estatísticas, tão ao gosto do paradigma economicista neoliberal, pareciam indicar que os índices de criminalidade baixavam nas localidades dominadas pelas milícias: o Executivo ficava feliz. Diversos “milicianos” eram arrolados como testemunhas de acusação e seus depoimentos eram, não raro, as únicas provas a levar diversos réus à condenação: o Ministério Público e o Judiciário ficavam felizes. Não por acaso, e não faz muito tempo, o atual prefeito do Rio de Janeiro declarou que a “polícia mineira” (outro nome dado ao grupo paramilitar) era uma resposta criativa e legítima para os problemas com a segurança da população, enquanto o seu antecessor via nesses grupos uma espécie de “autodefesa comunitária”.

As milícias surgem e se consolidam em um contexto marcado por práticas autoritárias baseadas no recurso à força como meio preferencial à solução dos diversos problemas sociais. O sucesso desses grupos paramilitares deve-se à tradição autoritária que condiciona a compreensão e atuação de considerável parcela da sociedade que se acostumou com o arbítrio e que acredita na repressão como o instrumento de controle social por excelência. A força dos grupos paramilitares é um dos preços que a sociedade brasileira ainda paga pelo esquecimento e perdão conferido aos agentes estatais que torturaram, estupraram, mataram e fizeram desaparecer os corpos de tantos opositores durante o regime de exceção. A aceitação da violência empregada pelos agentes estatais e colaboradores durante a ditadura civil-militar é um dos dados constitutivos da história brasileira que levaram à naturalização da violência utilizada pelos milicianos. Diante desse quadro, não pode ser encarado com surpresa o fato dos grupos paramilitares contarem com apoio popular e terem construído seus próprios braços políticos nos legislativos municipal, estadual e federal.

Os grupos de “milicianos” surgiram e se mantiveram funcionais ao sistema de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro. Ao atuar no controle da população (e na eliminação do indivíduo disfuncional), através de práticas que revelam uma espécie de sincretismo entre as estratégias de atuação da máfia italiana, dos “esquadrões da morte” e dos traficantes de drogas ilícitas das comunidades pobres do Rio de Janeiro (os “donos do morro” que, em substituição ao Estado, representam a figura da autoridade na localidade), os grupos paramilitares contribuem à manutenção das estruturas da sociedade capitalista, eliminado ameaças à ordem, defendendo-a da multidão de indivíduos que não interessam à sociedade de consumo. De fato, dentre as principais características das “milícias” pode-se citar o controle coativo de certo território e da população que nele habita e a busca de legitimação a partir de um discurso que promete a proteção dos habitantes, a defesa da sociedade e a instauração da ordem. Ao contrário de outros criminosos, os milicianos apresentam-se, de forma maniqueísta, como combatentes do bem contra o mal que assola a comunidade.

Todavia, em que pese já existirem denúncias cada vez mais freqüentes contra atos arbitrários desses grupos, a “CPI das Milícias” foi o principal instrumento de desvelamento da estrutura e do funcionamento dessas organizações criminosas. Vale lembrar que o deputado Marcelo Freixo propôs a instalação da “CPI das Milícias”, logo após assumir o primeiro mandato, em fevereiro de 2007, mas esse pedido ficou engavetado por cerca de um ano e meio até que, após a comoção pública gerada pelo seqüestro, cárcere privado e tortura de jornalistas do diário O Dia na comunidade do Batan, foi autorizada a sua instalação. Desde o início dos trabalhos, percebeu-se que o maior desafio seria revelar o que se escondia sob o discurso dos milicianos e autoridades estatais.

A partir das investigações, percebeu-se que a propalada redução na criminalidade nas comunidades “pacificadas” pelos paramilitares era ilusória, fruto da manipulação estatística, uma vez que os crimes cometidos por esses grupos não chegavam a ser registrados. Nas áreas controladas pelas milícias, a diferença entre os crimes ocorridos e aqueles que eram investigados era bem superior às das demais localidades. Foram os trabalhos dessa Comissão Parlamentar de Inquérito que revelaram o ânimo de lucro individual como principal motivação dos milicianos, a coação (e o assassinato) de testemunhas de crimes como estratégia de preservação dos criminosos, a participação de agentes estatais como integrantes do grupo e a exploração econômica de atividades legais e ilegais no território em que atuam como principal fonte econômica dessas organizações (apurou-se que o transporte alternativo é a principal fonte de renda dos grupos paramilitares). O relatório da CPI também traz dados sobre a votação de parlamentares em áreas de milícias nas eleições de 2006, bem como demonstra que, em determinadas localidades do Rio de Janeiro, apenas políticos que integravam ou eram simpatizantes dos grupos paramilitares podiam fazer campanha.

O Relatório Final da “CPI das Milícias” traz cinqüenta e oito sugestões concretas de ações contra as milícias, tais como a retomada do controle pelo poder público do transporte alternativo (na cidade do Rio de Janeiro, o chamado “transporte alternativo” continua entregue às cooperativas, que, muitas vezes, são fachadas para que grupos paramilitares continuem a exercer a exploração econômica da atividade de transporte, por meio da coação e da extorsão de trabalhadores), a licitação da atividade de transporte alternativo por indivíduo (em sentido contrário, a opção do Executivo Municipal foi realizar o processo de licitação entre cooperativa, o que, em muitos casos, serviu à formalização da exploração da atividade por milicianos), o desarmamento dos bombeiros e o aprimoramento dos mecanismos de fiscalização do fornecimento do gás doméstico (na época da CPI, apurou-se a existência de apenas cinco fiscais da Agência Nacional de Petróleo para fiscalizar todo o Rio de Janeiro).

A visibilidade e o reconhecimento pelo trabalho à frente da “CPI das Milícias” produziram um efeito colateral: Marcelo Freixo passou a ser apontado como um elemento perturbador de um sistema que até então funcionava a contento tanto para os milicianos quanto para as autoridades. Ao revelar aquilo que os beneficiários dos grupos paramilitares queriam manter oculto, Freixo tornou-se o estranho a ser demonizado e contra o qual utilizar a força passou a ser a melhor solução, o inimigo a ser eliminado.

Se por um lado, as autoridades do Rio de Janeiro aplaudiram as conclusões da CPI (o prefeito Eduardo Paes, por exemplo, autoridade responsável pelas decisões relacionadas ao transporte alternativo, recebeu das mãos do deputado Marcelo Freixo o relatório final da CPI das Milícias no início de 2009), por outro, deixaram de adotar as medidas sugeridas pelo parlamentar para atingir as fontes de renda dos grupos paramilitares. A atividade criminosa, portanto, permaneceu atrativa. Sem dificuldade, os “milicianos” que eram presos, inclusive os apontados líderes desses grupos, foram substituídos por outros.

Diante do problema explicitado pelos trabalhos da “CPI das Milícias”, a única resposta apresentada pelo governo estadual foi a da repressão penal seletiva. Alguns “milicianos” foram escolhidos, presos, processados e condenados. O complexo problema das milícias acabou descontextualizado, reformulado e redefinido como um simples caso de polícia no qual o indivíduo “a”, após ser etiquetado de miliciano, recebe uma pena “b”, enquanto o grupo paramilitar continua a explorar ilicitamente atividades econômicas vantajosas e a controlar, através do uso ilegal da força, determinadas parcelas da população. No bairro de Campo Grande, por exemplo, a partir da atividade de repressão ao grupo paramilitar conhecido como “Liga da Justiça”, o Governo do Estado fez nascer uma nova organização criminosa, o chamado “Comando Chico Bala”, formado por policiais e até por criminosos já condenados que, em um primeiro momento, em nome do Estado, combatiam a “milícia” que primeiro se instalou no local: deu-se, sob os olhares do governo, o milagre da multiplicação das milícias; trabalhadores e moradores desse bairro carioca que eram coagidos e explorados por um grupo paramilitar passaram a ser coagidos e explorados por dois grupos de milicianos.

O acerto em propor a CPI e desnudar as “Milícias” foi, paradoxalmente, o motivo da tensão suportada por Freixo e sua família desde o início das investigações. Por exercer o seu mandato de forma destacada, tornou-se alvo tanto dos milicianos, incomodados com as luzes que foram lançadas sobre os grupos paramilitares, quanto das autoridades estatais, preocupados com a projeção e o futuro político do ora parlamentar. Não raro, o deputado estadual passou a ser atacado por simpatizantes das milícias e do governo. Apesar das ameaças estarem documentadas, na medida em que se aproximam as eleições municipais, não falta quem insinue que Freixo se aproveita politicamente da situação.

Como Édipo, que atormentado pela profecia de Delfos deixou Corinto, Freixo, após o crescimento vertiginoso, nas últimas semanas, das ameaças direcionadas a ele, optou por se afastar de sua terra: a partir de um convite da Anistia Internacional, entidade que tem manifestado preocupação com o avanço das “milícias” nas cidades fluminenses, saiu do Brasil em busca de apoio internacional para a implementação das propostas da “CPI das Milícias” e de tranqüilidade tanto para a sua família quanto para a reflexão necessária à escolha dos próximos passos, em especial no que toca às estratégias para sua segurança. Em tempos sombrios e instáveis, nos quais quase tudo está em constante mudança e prepondera o individualismo possessivo, há na atuação de Freixo um convite à redescoberta da política. O que acontecerá com ele? Não se sabe. Futuras candidaturas? Isso não é importante, por ora. O certo é que Marcelo regressará ao Brasil para dar continuidade aos compromissos do mandato. As manifestações populares no Rio de Janeiro em defesa da vida do parlamentar indicam que ele está no caminho certo.

(*) Rubens Casara é juiz de direito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e do Corpo Freudiano. Artigo publicado originalmente na Caros Amigos.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

O CURSO DA HISTÓRIA NÃO PARA


A conjuntura política mundial dentro da visão lúcida e convincente de DOMENICO LOSURDO. O intelectual marxista nos mostra o terror que o mundo está vivendo sob a égide do imperialismo ocidente e o perigo de um confronto direto com a China.

Por DOMENICO LOSURDO
Fico feliz por participar deste evento que poderia ser um relançamento ou mesmo um novo arranque da presença comunista no nosso país. Quando, há vinte anos, foi criada a Rifondazione Comunista, o clima ideológico era bem diferente daquele de hoje. Há vinte anos, em Washington, os ideólogos mais enfáticos proclamavam que a história estava acabada: em todo caso o capitalismo havia triunfado e os comunistas haviam cometido o erro de ficarem do lado mau, e mesmo criminoso, da história. Sabemos hoje que estas certezas e suas mitologias haviam penetrado mesmo no grupo dirigente da Rifondazione Comunista. Assiste-se assim ao espetáculo grotesco no qual um líder de primeiro plano [1] aplicou todo o seu talento retórico para demonstrar que os comunistas haviam errado sempre, sempre provocaram catástrofes tanto na Rússia como na Itália; e continuavam a errar tanto na China como no Vietname e, em última análise, mesmo em Cuba. Compreende-se bem o entusiasmo da imprensa burguesa para com este profeta, para esta prenda vinda do Céu. Mas todos nós conhecemos o resultado final.

Foi um desastre: pela primeira vez na história da nossa república os comunistas estão sem representação no parlamento. Pior. Privar as classes laboriosas da sua história significava privá-las também da sua capacidade para orientar-se no presente. As classes laboriosas penam hoje para organizar uma resistência eficaz num momento onde a República fundada sobre o trabalho [2] se transforma em república fundada sobre o despedimento arbitrário, sobre o privilégio da riqueza, sobre a corrupção, sobre a venalidade dos cargos públicos. E, infelizmente, até aqui foi quase inexistente a resistência oposta ao processo pelo qual a República que repudia a guerra [3] se transforma em república que participa nas mais infames guerras coloniais. É com este desastre atrás de nós que nós nos empenhamos hoje no relançamento do projecto comunista.

Disto decorre uma necessidade urgente. E não se trata de uma necessidade experimentada só pelos comunistas. Vemos o que acontece no país que, há pouco mais de vinte anos, vira a proclamação do fim da história. As ruas estão cheias de manifestantes que gritam a sua indignação contra a Wall Street. Os cartazes não se limitam a denunciar as consequências da crise, ou seja, o desemprego, a precariedade, a fome, a polarização crescente de riqueza e pobreza. Estes cartazes vão mais além: eles denunciam o peso decisivo da riqueza na vida política estado-unidense e desmascaram de facto o mito da democracia americana. O que dita a lei na república norte-americana é na realidade a grande finança, é a Wall Street; eis o que gritam os manifestantes. E certos cartazes vão mais além e bradam a cólera não só contra a Wall Street mas também contra a War Street. Isto quer dizer que o quarteirão da alta finança é identificado como sendo ao mesmo tempo o quarteirão da guerra e do desencadeamento da guerra. Emerge assim, ou começa a emergir, a consciência da relação entre capitalismo e imperialismo.

Sim, o capitalismo traz ao mesmo tempo crises económicas devastadoras e guerra infames. Mais uma vez as massas populares e os comunistas encontram-se diante do dever de enfrentar a crise do capitalismo e sua política de guerra. Por razões de tempo não me deterei senão sobre este segundo ponto. O fim da intervenção da NATO na Líbia não é o fim da guerra no Médio Oriente. As guerras contra a Síria e o Irão já estão em preparativos. Estas guerra, mesmo, já começaram. O poder de fogo multimediático com a qual o Ocidente tenta isolar, criminalizar, estrangular e desestabilizar estes dois países está prestes a transformar-se num poder de fogo verdadeiro, com base em mísseis e bombas. E nós comunistas devemos desde já fazer ouvir a nossa voz. Se esperássemos o desencadeamento das hostilidades não estaríamos à altura nem do movimento comunista nem do movimento anti-militarista, e não seríamos os herdeiros de Lenine e de Liebknecht. Devemos desde o presente organizar manifestações contra a guerra e contra os preparativos de guerra; desde o presente devemos clarificar o facto de que a posição em relação à guerra é um critério essencial para definir a discriminação entre aliados potenciais e adversários irredutíveis.

No que se refere à China, Washington, sim, transfere para a Ásia o grosso do seu dispositivo militar, mas por enquanto não agita de modo explícito senão a ameaça da guerra comercial. Mas, como é notório, sabe-se como as guerras comerciais começam mas não se sabe como acabam. Fariam bem em reflectir sobre este ponto aqueles que, mesmo na esquerda, se alinham na campanha anti-chinesa: eles viram assim as costas à luta pela paz.

Trata-se de uma atitude tanto mais desconcertante pelo facto de a China ter sido protagonista de uma das maiores revoluções da história universal. Evidentemente, convém manter em mente os problemas, os desafios, as contradições mesmo graves que caracterizam o grande país asiático. Mas clarifiquemos primeiro o quadro histórico. No princípio do século XX a China era uma parte integrante deste mundo colonial que pôde romper suas cadeias graças à gigantesca vaga da revolução anti-colonialista desencadeada em Outubro de 1917. Vemos como a história se desenvolveu a seguir. Na Itália, na Alemanha, no Japão, o fascismo e o nazismo foram a tentativa de revitalizar o neocolonialismo. Em particular, a guerra desencadeada pelo imperialismo hitleriano e pelo imperialismo japonês respectivamente contra a União Soviética e contra a China foram as maiores guerras coloniais da história. E portanto Stalingrado na União Soviética e a Longa Marcha e a guerra de resistência anti-japonesa na China foram duas grandiosas lutas de classe, aquelas que impediram o imperialismo mais bárbaro de realizar uma divisão do trabalho fundamentado na redução de grandes povos a uma massa de escravos ou semi-escravos ao serviço da suposta raça dos senhores.

Mas o que é que se passa hoje? Como já disse, os EUA estão em vias de transferir o grosso do seu dispositivo militar para a Ásia. Leio em telegramas de ontem (28/Outubro/2011) da agência Reuters que uma das acusações aos dirigentes de Pequim é a de promover ou querer impor a transferência de tecnologia do Ocidente para a China. Os EUA teriam desejado manter o monopólio da tecnologia para poderem continuar a exercer uma dominação neocolonial; a luta pela independência manifesta-se também no plano económico. Portanto, revolucionária não é só a longa luta pela qual o povo chinês pôs fim a um século de humilhações e fundou a república popular; nem apenas a edificação económica e social pela qual o Partido Comunista Chinês libertou da fome centenas de milhões de homens e mulheres; mesmo a luta para romper o monopólio imperialista da tecnologia é uma luta revolucionária. Marx nos ensinou. Sim, a luta para modificar a divisão internacional do trabalho imposta pelo capitalismo e pelo imperialismo é em si mesma uma luta de classe. Do ponto de vista de Marx, a luta para ultrapassar no quadro da família a divisão patriarcal do trabalho já é uma luta de emancipação; seria bem estranho que não fosse uma luta de emancipação a luta para por fim ao nível internacional à divisão do trabalho imposta pelo capitalismo e pelo imperialismo, a luta para liquidar definitivamente este monopólio ocidental da tecnologia que não é um dado natural mas o resultado de séculos de dominação e de opressão!

Concluo. Vemos nos nossos dias o país-guia do capitalismo mergulhado numa profunda crise económica e cada vez mais desacreditado ao nível internacional. Ao mesmo tempo, ele continua a agarrar-se à pretensão de ser o povo eleito por Deus e a aumentar febrilmente seu aparelho de guerra já monstruoso, assim como a estender sua rede de bases militares por todos os cantos do mundo. Tudo isso não promete nada de bom. É a concomitância de perspectivas prometedoras e de ameaças terríveis que torna urgente a construção e o reforço dos partidos comunistas. Espero vivamente que o partido que hoje construímos venha a estar à altura dos seus deveres.
Rimini, 29/Outubro/2011
(1) Fausto Bertinotti, durante muito tempo secretário-geral do Partito della Rifondazione Comunista (NdT)
(2) Artigo 1 da Constituição italiana: "A Itália é uma republica fundamentada no trabalho"
(3) Artigo 11 da Constituição italiana: "A Itália repudia a guerra como instrumento de ofensa à liberdade dos outros povos e como meio de resolução das controvérsias internacionais".